As histórias mais bacanas são aquelas que pegam a gente de surpresa…

Eu estava em San Francisco, Califórnia, terra de Obama, num gélido 28 de dezembro. Bem naquele período em parece que a vida está numa entressafra, indecisa se resolve acabar com o que sobrou do Natal, mas também pensando no Ano Novo, que taí já já, mas também ainda não chegou. Para piorar, era frio e era uma segunda-feira.

Eu fui visitar uma amiga em Mountain View. Desligadíssima, nem sacava que ali perto ficava Palo Alto e a Universidade de Stanford, palco das invenções de um cara chamado Steve Jobs.

Não, eu tava de férias e minha cabeça também estava numa entressafra.

Minha amiga, porém, tinha uma consulta agendada para aquele dia, e perguntou se eu gostaria de fazer hora em Stanford, a universidade. “É lindo lá, você vai gostar de conhecer enquanto me espera”. Topei.

Quando ela me deixou lá, me perguntei se era de fato uma boa idéia… A universidade estava toda fechada, com os alunos de volta à suas casas para as festas de fim de ano. Os quarteirões, lindos que só, formavam verdadeiros corredores de vento, aquele vento gelado de dezembro que parece entrar nos ossos a cada lufada mais forte.

Stanford

“Igreja, dizem que tem uma linda por aqui”. Fechada.

“Ok, então. Onde fica a cafeteria?”. Fechada.

“Bibloteca?” Nem.

“Hummm, banquinho da praça?” Cri, cri, cri…

De vez em quando, eu via um estudante indiano ou chinês passando num corredor distante. Ou um esquilo solitário pulando entre as colunas. Não havia nem um banquinho acolchoado, longe da pedra fria, para eu esperar. A Funai devia estar morrendo de inveja do programa de índio em que eu estava.

Faltava ainda uma hora e meia para ela voltar. Resolvi então andar por essa cidade fantasma que, pelo menos, assim esquentava. Andar e pensar.

“Essa universidade me lembra a de um filme… qual era mesmo? Acho que era ‘Lendas Urbanas’, em que havia uma menina numa universidade e de repente começaram a acontecer assassinatos estranhos com as pessoas ao redor dela, e era sempre em lugares desertos, e tinha machados e cordas e… Não, não, argh! Era outro filme, mais leve, peraí que eu lembro… Acho que é aquele que tinha um grupo de amigos de universidade, que eram atacados por um cara com uma máscara branca e facão e…Não, esse é ‘Pânico’, droga!”

Porque esses pensamentos aleatórios rolam justo quando a gente tá sozinha? 

E foi justo aí que eu me deparei com esses caras.

EStátuas de Rodin 2

O susto foi só a princípio – e nem foi tanto porque estava de dia. Mas foi o tempo de perceber que eu já tinha visto esse tipo de estátua em algum lugar.

“Parece Rodin” – e era dele mesmo. O criador do “O Pensador” esculpiu este conjunto de homens, numa obra chamada “os Burgueses de Calais“.

Numa plaquinha, a história: durante a Guerra dos Cem Anos, o rei da Inglaterra Eduardo III, cercou a cidade francesa de Calais e o rei francês pediu que seus súditos resistissem. Mas ele próprio não conseguiu libertar a cidade, e seus habitantes começaram a passar fome, pois estavam sitiados. O rei inglês, então, propôs que seis dos homens mais importantes da cidade se entregassem (provavelmente à execução) que ele libertaria o povo. Para isso, esses homens deveriam sair do castelo vestindo o mínimo de roupas, cordas no pescoço, mãos atadas e as chaves de Calais.

Seis burgueses foram os voluntários. Um deles, o líder da cidade. E foi esse momento em que eles saíam de Calais, com um misto de heroísmo, pavor, tristeza e hombridade, que Rodin optou por retratar na obra.

EStátuas de Rodin 3

Cada um dos burgueses expressa uma emoção diferente, e todos estão ao nível do chão e tem o tamanho de um homem normal – um desejo de Rodin ao criá-los, para aproximar a obra de quem a vê.

Todos, vestidos em trapos e desespero, nem de longe parecendo os homens nobres que a história conta que eram.

EStátuas de Rodin

E eu acabei ficando por lá, admirando. Stanford continuava um gelo e vazia naquela tarde, mas pelo menos naquele canto eu tinha a sensação de que estava presenciando uma coisa muito importante acontecendo.

Continuava sozinha, e nem parecia.

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Só bem mais tarde que eu ia descobrir algumas coisas:

  • Que em Stanford existe o Cantor Arts Center, que entre uma série de coisas possui um acervo impressionante de réplicas de Rodin. Que é lindo. E que tava fechado no dia que eu fui, exceto pelos Burgueses de Calais, que estavam ao ar livre;
  • Que, na verdade, os Burgueses de Calais não foram executados. Na hora H, a rainha da Inglaterra, que estava grávida, disse que seria de muito mau agouro executar 6 homens em uma data tão próximo do nascimento do bebê. O rei concordou e, voilá, poupou os 6 homens;
  • Que eu ia querer me tornar blogueira alguns anos mais tarde (nem sonhava em ser, na época) e ia achar esse lance de história e arte, assim tudo misturado, um barato;

E foi por acaso que eu achei as fotos desse dia, do meu interlúdio pessoal com os seis, e achei que valia a pena compartilhar, sem pretensões, essas minhas confabulações da época.

Foi a primeira vez que eu vi uma estátua falar, por assim dizer. E partilhei do sofrimento dela, e me senti próxima do que o escultor quis mostrar – ou, ainda, acho que ele que se aproximou de mim, como que forçando uma porta até arrebatar a minha humanidade, e com isso tornando um pátio de pedras e estátuas o canto mais caloroso de uma universidade. Mesmo que triste.

Até então, eu não sabia nada de arte (e continuo sabendo quase nada, embora hoje eu ainda finjo que me engano). Mas eu entendi que eu tava na frente de uma coisa importante – mesmo antes de ler a placa. E foi a partir dessa viagem que começariam a chegar lentamente na minha prateleira livros de História da Arte, biografias, histórias de guerra… e o blog.

Chegou-me, sobretudo, a curiosidade.

Hoje, de certa forma, fico grata por ter estado tudo fechado naquele dia em Stanford. Tivesse um café aberto apenas, e eu estaria lá, abrigada do frio e do êxtase de Rodin.

Tento lembrar disso quando estou fazendo hora, ou quando tá frio, ou quando eu tenho, aparentemente, um programa de índio pela frente. Tento lembrar disso quando, sobretudo, eu não tenho nada para fazer. Tento lembrar que, às vezes, a gente precisa que tudo esteja fechado ao nosso redor para nossos olhos conseguirem captar algo que a gente precisava encontrar.

Na maioria das vezes isso não acontece e eu esbravejo, reclamando do mundo. Normal, faz parte. Mas é um sinal de que é preciso ter as coisas fechadas à nossa frente mais vezes, até que a gente consiga fazer o verdadeiro aprendizado que é necessário.

Comments

3 COMENTÁRIOS

  1. Adoro o encantamento de pequenas descobertas, surpresas que se mostram aos olhos quando menos esperamos ou quando, por alguma razão, nos permitimos. Amei o texto, de uma doçura que nos transmite seu encantamento. Abraços,

    Paula

  2. Adoooooreeeei o post. Moro pertinho de Stanford e sempre levo minhas visitas para passear por lá. As estátuas na frente do Cantor Center, são espetaculares e a galera sempre se assusta em perceber que Rodins – que sim, são de verdade!

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