Demorei para escrever este texto porque eu precisei de tempo para digerir.

Como quase todo mundo, parece que a vida assumiu um estágio de choque e angústia desde sexta, com o resultado do referendo britânico. Lembro que  a manhã deste dia foi uma montanha russa de sensações (mas daquelas que parece que só tem a queda, uma queda enorme que não pára): antes das 10 horas da manhã eu já estava exausta de ler que o Reino Unido anunciava a saída, o primeiro ministro renunciava, as bolsas e a libra despencavam e a Escócia ameaçava pedir o divórcio.

vote remain

Mas acho que o pior disso não eram nem as incertezas político-econômicas do momento, mas a nuvem cinzenta que se seguiu como uma chuva amarga: eu e todos os não-britânicos, de uma hora para a outra, não nos sentimos mais bem-vindos.

“Não quero ficar num país que não me quer.”

“Eu sei que isso não vai acontecer, mas a sensação que eu tenho é que vão me atacar”.

“Não me sinto mais bem-vinda”.

Três frases que eu escutei antes do meio dia, vindas de três amigas diferentes que moram no Reino Unido. Me juntei ao coro de todas elas, porque me sentia assim também.

Só que, seguido a essas, começaram a pipocar de outro lado frases de europeus (esses, profundamente irritados com a decisão), brasileiros e gente do mundo todo, de fora do Reino Unido.

“Acabo de cancelar meus planos de ir para a Inglaterra. Não quero nada com esse bando de racistas”.

“Um país cheio de visões racistas e egocêntricas que o Brexit mostrou”.

“Que pena que você está cercada de xenófobos. Tenha cuidado”.

Dá para notar que os ingleses não estão no auge da popularidade neste momento. ????

Mas aí aconteceu uma coisa nesse fim de semana….

Por sorte (ou providência do destino) eu passei essa semana do referendo na Espanha acompanhando meu marido (igualmente inglês) e um grupo de quase 100 ingleses em uma convenção da empresa. Acabou por ser providencial essa distância de casa para ver a situação de longe e, principalmente, ver de perto a reação e o pensamento desse grupo com que eu estou. Todos, sem exceção, cabisbaixos. Chocados. Todos pró EU. Foi um silêncio amargurado assistir a TV naquele dia.

(Confesso, cá entre nós, que me lembrou muito a sensação que eu tive ao assistir ao 7×1 do Brasil e Alemanha – mas com um placar cujo impacto se esticaria para muito além de 90 minutos).

Mas, passado o choque, começaram também os debates – e, porque não, as piadas, porque não é só a gente que ri da desgraça. E muitas, muitas discussões ponderadas, respeitosas e extremamente inteligentes. Pode ser que eu tenha dado sorte: estava no meio dos 48% que votaram “IN. Mas esses 48% é muita gente. E à medida em que eu sentia a sensação de ser unwelcome ir embora, também sentia se abrir um fosso enorme se formando entre os discursos de medo e de raiva de um lado, e a turbulência e  angústia que grassava do outro.

Esse fosso começou a me incomodar – e quando eu estou incomodada, eu escrevo. Só que o Brexit nunca foi resposta de uma pergunta só, ao contrário do que aparecia lá na cartela de votação. O referendo expôs vários problemas internos do Reino Unido para o mundo,  e eu senti que precisava compartilhar muito do que ouvi nesses dias: um outro lado da questão, especialmente sob o ponto de vista de ingleses que estão muito longe de ser xenófobos, ou racistas, mas que são 48% do resultado. Gente para caramba, gente como a gente.

Eis, então, uma reflexão sóbria e ponderada que vem sido escrita desde a última sexta feira sob a ótica de vários ingleses. E segundo eles, o voto pode até ter acontecido na quinta mas os motivos por trás do “não” já vinha sendo cozinhando há muito tempo.

Nesse tempo, o problema não era o imigrante. Eram outros ingleses.

 

Um parênteses histórico

Fique à vontade para pular essa parte, se você quiser ir direto ao próximo ponto. Mas porque gente no Brasil me pediu, gente na Inglaterra me explicou e eu adoro História, resolvi acrescentar esse tópico só para contextualizar alguns alguns porquês, “ondes” e “quandos”.

Rebobinemos a fita para meados do século XV, quando Londres era a única grande cidade da Inglaterra. Na época, havia também cidades-fortes maiores como York ao norte, que cresciam ao redor de castelos, mas basicamente todo o desenvolvimento estava na capital. Isso começa a mudar um pouco com o início das Grandes Navegações e o consequente desenvolvimento de cidades portuárias – especialmente Bristol, também no sul do país, e que chegou a ser uma das três cidades mais ricas graças ao comércio dos navios. Mas o crescimento do resto do país só aconteceria mesmo no século XVIII, com a Revolução Industrial: aí, foi a vez de Manchester (que teve a primeira máquina a vapor e o crescimento da indústria têxtil), Liverpool (que recebeu a primeira linha férrea de passageiros do mundo, ligando-a a Manchester) e Birmingham (outro terceiro pólo industrial). Do outro lado, Sheffield e Leeds prosperaram por serem importantes pólos siderúrgicos, e a demanda por ferro era altíssima para construir as novas estradas de ferro.

Cenário lindo: todo mundo conectado e produzindo, e a Inglaterra mandando ver como principal economia do mundo.

Fast-foward agora para o século XX, especialmente depois da II Guerra Mundial.

Resumindo bastante a história e os todos os motivos, muitas dessas cidades (e em especial, das minúsculas cidades vizinhas) caíram em decadência: havia a recessão pós-guerra, a queda vertiginosa da demanda pelos serviços de siderurgia, portos sendo abandonados com a chegada dos transportes por avião e trem e a classe trabalhadora da Inglaterra em franca pressão para conseguir segurar as pontas entre contas que cresciam e empregos que sumiam. Começaram a crescer problemas com violência, drogas , brigas de gangues e problemas sociais nessas regiões.

Os anos 80 foram particularmente difíceis na Inglaterra. Só para fins de exemplo, nessa época Liverpool foi considerada a cidade mais violenta da Inglaterra, afogada em guerras entre gangues. E em 1984 e 1985 o governo britânico – mais especificamente o Partido Conservador, na figura da  primeira ministra Margareth Thatcher – travou uma intensa batalha com os sindicatos de mineradores no país, especialmente na região de Sheffield.  A vitória do governo foi uma pá de cal sobre sobre o sindicato dos mineradores na Inglaterra, que nunca se recuperou totalmente: foram mais de 20 mil desempregados com o fechamento de fábricas.

Ressaltemos, novamente, um detalhe: foi o governo britânico que fez isso. Não as regras do bloco europeu. Por favor, guardem essa informação – voltaremos a ela mais tarde.

À guisa de curiosidade: há um filme inglês de comédia chamado “Full Monty” cuja história se passa nos anos 70 e conta a história de um grupo de empregados de uma firma de aço em Sheffield que perdem o emprego e para sobreviver resolvem se tornar um grupo de strippers(!!!). Sim, o filme é uma comédia e vale a pena assistir – mas piadas à parte, a história tem como premissa a situação econômica desesperadora da época.

Mas aí as coisas voltaram a melhorar – pelo menos em alguns pontos do país. Liverpol ganhou em 2003 o título de Capital da Cultura Européia para 2008, e na esteira levou uma série de investimentos para uma remodelação total da cidade, o que simplesmente transformou a cidade no que ela é hoje. Manchester cresceu, apareceu e assumiu o posto de segunda cidade mais importante da Inglaterra. Oxford e Cambridge voltaram a assumir seus papeis no circuito intelectual do mundo com suas universidades, e atraindo o investimento de várias empresas de ponta que se instalaram nos seus arredores, de olho na mão-de-obra jovem e altamente qualificada que efervescia nestas duas cidades. Leeds e Sheffield se reinventaram: são hoje importantes centros comerciais regionais. E se o ex-primeiro ministro Tony Blair acabou ficando com o legado de ter sido o cara que arrastou o Reino Unido para a Guerra do Afeganistão em apoio ao amigo George Bush, ele também tem o mérito de ter sido o cara que investiu num marketing positivo do Reino Unido mundo afora. Os ônibus double-deck vermelhinhos viraram ícone, o “Mind the Gap” virou jargão e a Union Jack, bandeira britânica, virou cool: aparecia estampada em porta de geladeira, capô de carro, mobília e roupa.

Ah, e Londres! Londres virou capital da moda, do mundo, encontrou uma população diversificada em culturas, credos e línguas e descobriu que adora tudo isso junto e misturado. O ápice desse momento foi nas belíssimas Olimpíadas em 2012. Londres deixou de ser inglesa para ser internacional e Tribalista: é de todo mundo e todo mundo lhe quer bem.

Tudo isso fez a Inglaterra ficar muito bonita na foto. Por isso que demora-se para notar os fantasmas.

O cenário: um país profundamente dividido

Semanas antes da votação, numa das muitas discussões pré-referendo, lembro de ter ouvido a seguinte análise (também feita por um inglês):

“Há dois tipos de pessoas para as quais a saída da União Européia poderia ser benéfica. Uma são os absurdamente milionários, já que muitas das legislações européias são criadas de forma de tornar a distribuição de riqueza mais justa, e isso poderia impactar os planos desses multi-milionários ficarem ainda mais ricos. Só que eles multi-milionários são parte muito pequena da pirâmide social, e seus votos não serão expressivos na eleição. A outra metade, porém, é a extrema base da pirâmide social: as camadas mais pobres e despreparadas, em especial de adultos desempregados, sem perspectiva, com pouco estudo e nenhum preparo, que muitas vezes já saem endividados das universidades, tem filhos para cuidar e não conseguem empregos. Esses não participam ativamente das numerosas vantagens que a União Européia proporciona, como a livre circulação de pessoas ou nos acordos comerciais; eles estão desempregados e muitos vivem dos benefícios do estado. E esses votos, sim, podem fazer a balança perder para a saída do bloco europeu”.

Esse era um ponto de vista ouvido antes da votação, e já dava os sinais  do abismo que há entre a realidade social de diferentes grupos dentro da Inglaterra e que o referendo, portanto, “podia dar ruim”.

Mas a teoria foi confirmada por outro artigo publicado após o referendo pelo The Guardian, que fala que muitas das pessoas que votaram pela saída da União Européia são as mesmas que vem sofrido um abandono constante dos últimos governos britânicos. Porque infelizmente, o período cool não veio para todo mundo: como a economia britânica migrou para uma economia de serviços, a classe de pessoas que trabalhavam nas indústrias e siderúrgicas em muitas das cidades do interior da Inglaterra não encontraram outras oportunidades que continuasse a mover a economia local após o declínio das fábricas. Há bolsões de pobreza espalhados ao redor das grandes cidades (e se esses bolsões de pobreza não são como a gente imagina os bolsões de pobreza no Brasil, com gente morrendo de fome e miséria, eles também são impõem uma condição de vida bastante crítica para quem está vivendo nele dia a dia, ano a ano) e geram um custo social todos os anos em saúde e segurança para o país.

[learn_more caption=”Contexto Rápido: a juventude de JK Rowling” state=”open”] A própria JK Rowling, autora (hoje milionária) da série Harry Potter nasceu e cresceu em um dos condados do interior e passou por maus bocados antes de chegar à fama. Ela se refere à sua juventude como uma época de desespero: formada, sem emprego, mãe solteira, precisou pedir ajuda do governo e chegou a ser diagnosticada com depressão e a pensar em suicídio. Nas palavras dela, “eu era tão pobre quanto é possível ser pobre em uma Grã-Bretanha moderna, sem chegar a ser sem-teto”.[/learn_more]

O The Independent publicou há dois anos um mapa das 10 cidades mais ricas e mais pobres da parte norte da União Européia: Londres era a única que figurava na lista das mais ricas, ao passo que 9 das mais pobres estava no Reino Unido. Mesmo sendo um mapa feito com base em uma análise controversa dos dados, uma coisa ficava clara: o desequilíbro entre ricos e pobres no Reino Unido é maior do que em todos os seus vizinhos do norte da União Européia.

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Crédito: gráfico retirado do Indy100, do Independent

O fato é que para essas pessoas as terríveis promessas que a campanha pró“Remain” fez de uma recessão econômica terrível com a saída do Reino Unido da União Européia (como, aliás, vimos na sexta pós-referendo: queda da libra, queda de bolsas em efeito dominó, renúncia do Primeiro Ministro e pedido de separação da Escócia, tudo num dia só) teriam pouco efeito prático: elas já vem vivendo essa recessão todo dia, com alto custo de moradia, a alta do custo de vida, pouca estabilidade nos empregos e, mais recentemente, medidas austeras na economia.

[learn_more caption=”Contexto rápido: Polêmicas sobre medidas do governo inglês”] Outro exemplo: um dos casos mais recentes que mexeram com o país foi o anúncio do corte do benefícios de créditos por filhos por George Osborne, o Ministro da Economia. Um vídeo gravado de uma mãe em lágrimas desabafando ao Ministro que este corte impactaria diretamente a mães que criam filhos sozinhas como ela, e que por causa disso ela e a filha de 11 anos passariam a viver na pobreza, viralizaram no país. A comoção foi tanta que o ministro teve que voltar atrás com a medida.

O que não deixou de impedir outros cortes logo em seguida: o mais recente foi nos benefícios a pessoas com deficiência física – e que provocou a renúncia de um dos políticos mais influentes do próprio Partido Conservador, que discordou veemente de como as coisas estavam sendo conduzidas. Houve mais polêmica, e o primeiro ministro inglês teve que voltar atrás com a medida também[/learn_more]

 “Essas pessoas veem as decisões políticas do país como algo ‘Londoncentric’, assim como elas veem o estilo de vida e as oportunidades que existe na capital são inalcançáveis para elas. A União Européia, no dia a dia, não significa muita coisa para elas.”

Eis outra citação de um inglês com quem eu conversei.

E aí aconteceu uma coisa, talvez a única coisa, que Donald Trump jamais disse sobre o Reino Unido que pudesse ter um fundo de verdade: algumas pessoas começaram a ficar com raiva.

Com um governo que falhou sucessivamente em assistí-los, que cortou milhares de empregos (lembram dos mineradores e da Margareth Thatcher?), implementou uma política de austeridade interna com uma série de cortes para tentar equilibrar as contas e ainda falhou em se comunicar e representar essa parcela da população, acontece o que é chamado de estratégia defensiva: as pessoas não tomam decisões em caráter de investimento, como as vantagens que se pode conquistar no futuro, e sim pensando em como fazer para não perder o pouco que elas tem agora.

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“Esse referendo sempre foi pessoal. Sempre foi nós contra eles”, disse Heloísa Righetto, blogueira brasileira queridíssima que mora aqui em Londres, em seu ótimo post-desabafo sobre o choque do Brexit.

Ela fala, no seu post, do incômoda sensação amarga que todos os imigrantes que moram no Reino Unido sentiram na manhã de 24 de junho, com o resultado do referendo: não éramos bem-vindos. A imigração dentro do Reino Unido foi a questão mais sensível e a tecla mais batida pelos apoiadores da saída, e o resultado das “poll stations” soou como um grito para o mundo de que, sim, os ingleses não querem mais estrangeiros ali.

Eu vou chegar na questão da imigração, já já. Mas após dias nessa minha tentativa de conversar com vários ingleses para destrinchar mais as razões por trás do “OUT”, arrisco dizer que a Helô estava certíssima: ao escrever no artigo dela o “nós contra eles”, ela atirou no que viu e acertou também o que não viu.

O “Nós contra eles”, para a campanha do “Leave” foi entre locais versus imigrantes. Mas na prática é também sobre os ingleses entre si.

 

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Vamos trazer o cenário descrito acima para o dia após o referendo. Considerando esse contexto de um país dividido, não é surpresa que os resultados do referendo tenham apontado, por exemplo, que há um fosso enorme entre os votos dos jovens e dos mais velhos.

How different age groups voted
Crédito da foto: site da BBC

Os jovens britânicos, mesmo os que moram no interior, tem mais chances de se beneficiar as enormes possibilidades de trabalho e troca que a União Européia proporciona, como a livre circulação de pessoas, oportunidades de estudos, etc. O mesmo não acontece com os mais velhos, especialmente acima de 60 anos. Análise semelhante acontece nas cidades: note que Londres, Cambridge, Oxford, Leeds, Manchester, Liverpool e partes do País de Gales – cidades, aliás, que experimentaram um forte crescimento recentemente, e, portanto estão conectadas com mais oportunidades e mais contato com a cultura, estudo e vantagens que a União Européia oferece – votaram massivamente para permanecer na União Européia, o que não acontece nos resto dos distritos do país.

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“Você sabia que todos os votos para sair vieram de pessoas velhas, não-educadas e pobres das vilas da Inglaterra?”

Mude uma palavra aqui ou ali, mas essas foram as linhas gerais das mensagens que começaram a pipocar raivosamente entre algumas pessoas que foram contra a saída. Confesso que tive um pequeno déja vu de 2014, quando tivemos uma apertada eleição para presidente no Brasil (51% contra 49% , lembram?) e imediatamente o mundo passou a ser dividido entre coxinhas e petralhas, e os nordestinos foram sentenciados a carregar para todo o sempre a culpa por todas as coisas ruins que aconteceriam no Brasil.

“Regredimos para a época tribal. Agora ficamos reduzidos à Jovens contra Velhos, Capitais contra Interior, ‘IN’ contra ‘OUT’.”

Esse é o desabafo de Tamlyn, um inglês pró-“remain”, cientista, PhD e que namora uma cientista muçulmana. Eu acompanhava atentamente nas redes sociais porque eu gostava das observações inteligentes que ele fazia. Entendo a angústia – se como brasileiros ganhamos alguma experiência dessa situação, é a de poder dizer que o país não melhorou muito indo por esse caminho.

Isso é muito ruim por vários motivos. Primeiro, porque desqualificar o outro como “sem-educação” só porque ele votou diferente é fácil  – e porque não dizer perigoso, já que aplica a mesma lógica do preconceituoso xenófobo que afirma que se há um problema, foi o outro que causou. Além disso, ao se assumir que o resultado de uma votação é X por causa de um único motivo (“porque são xenófobos/burros/velhos”) perde-se a perspectiva de todos os problemas sociais que estão acontecendo para aquelas pessoas há anos que desencadearam aquele processo de voto. Resultado: os problemas só se agravam e as eleições deixam de funcionar porque só vão refletir mais e mais esse abismo.

“Por mais que eu deteste o resultado, eu tenho que aceitar que eles têm o mesmo direito que eu de serem ouvidos”, disse Mark.

 Então, porque o Brexit foi o assunto do dia e eu queria entender melhor, pedi para os próprios ingleses me explicarem, na visão deles, quais as razões por trás do “OUT”.

Spoiler: imigração não foi o primeiro da lista.

 

Pediu para sair por quê?

 

O problema sobre o referendo é que perguntar se você quer sair ou ficar na União Européia é uma questão complexa, porque ‘fazer parte da União Européia’ significa coisas diferentes para pessoas diferentes”.

Essa é a frase da Suzanne, inglesa, tech leader de projetos e palestrante frequente em eventos que fomentam o crescimento da presença feminina em posições de chefia em empresas de tecnologia. Estavam eu, ela e um mais um grupo de ingleses passando a tarde de domingo em conversas profundas sobre o assunto. Foi melhor troca de idéias razoáveis, refletidas e ponderadas sobre o assunto, ainda tão sensível para eles e para todos, e por isso eu decidi que valia a pena dividir neste post.

Como estaremos falando de política britânica e opiniões, eu deixo claro que todos os textos abaixo são transcrições fiéis do que eles me contaram, e que não contém nenhuma opinião minha – o máximo que eu fiz foi colocar algumas notas com links e fontes de referência, para ajudar a contextualizar. Também procurei escrever tudo na íntegra – achei que assim era a melhor forma de colocar em perspectiva diferentes visões internas sob a própria voz deles e abrir para o resto do mundo outras cartas do dilema inglês que vão além de dizer apenas que “quem votou para sair são os xenófobos” (embora eles não estejam excluídos da foto geral).

Em tempo: todos os “entrevistados” são ingleses e votaram para permanecer na União Européia. A meu pedido, tentaram explicar o por quê de tantas pessoas votarem para sair. Quais os motivos, quais as justificativas, etc.

Eu conversei com um monte de gente, mas seguem os comentários das 5 pessoas que me deram as melhores respostas: Suzanne (citada acima e formada em Oxford e Cambdrige); Tom, marido da Suzanne e que trabalha no departamento de Ciências da Computação da Universidade de Oxford; Miles, que hoje é desenvolvedor, mas já trabalhou com Educação; e Mark (meu marido).

 

ELES SE SENTEM RESTRINGIDOS

“A campanha do ‘Remain’ bateu nessa tecla o tempo todo: que estar no bloco europeu é bom para a economia do Reino Unido. O problema é que o conceito ‘economia’ é muito abstrato. A maioria das pessoas que votaram para sair não pensaram nas bolsas ou na cotação da libra. Elas votaram pelos motivos que afetam o bolso delas no dia a dia.”

Tom: “Vamos pegar como exemplo a indústria pesqueira na Inglaterra. Há diversas vilas e cidadezinhas que cresceram e se desenvolveram ao redor da atividade pesqueira – afinal, a Inglaterra é uma ilha, e portanto com um extenso litoral que historicamente sempre foi farto em bacalhau, salmão, entre outros. Estão comunidades são tradicionais e estão ali há decádas, séculos até, e sempre se acostumaram a pescar de uma determinada forma. Porém, os pescadores ingleses hoje precisam cumprir as cotas pesqueiras estabelecidas pela União Européia, que regulamenta a atividade.”

[learn_more caption=”Contexto rápido: sobre as cotas pesqueiras”] Um parênteses rápido sobre as cotas pesqueiras: todos os países membros possuem cotas que os permitem pescar determinadas quantidades de peixes e em determinados locais do oceano. A medida, com isso, é incentivar a atividade pesqueira de todos os países e garantir o mercado para todos os países. Você pode saber mais sobre as cotas pesqueiras aqui.[/learn_more]

“Porém, para o pescador que mora nessas vilas pesqueiras, o conceito de ‘União Européia’ é muito abstrato. Tudo o que ele sabe, na prática, é que os avós e pais dele pescavam de um jeito por décadas, mas que ele não pode fazer desta forma agora porque ‘tem um cara na Europa que não deixa’. Então, se você pergunta para esse cara se ele quer sair da União Européia, é claro que ele vai dizer que sim.”

Crédito da foto: Nguyễn Linh (Unsplash)
Crédito da foto: Nguyễn Linh (Unsplash)

“Outra questão são as cotas em si. Os países membro tem áreas de pesca determinadas e tipos de peixes  que eles podem pescar, bem como quantidades-limite que ele precisa colocar para a venda.”

(Nota minha: não consegui achar outra fonte mais confiável, mas o artigo sobre as cotas pesqueiras na Wikipedia informa que, mesmo com a reclamação constante de pescadores em vários países, o estoque de peixes em toda a Europa vem baixando graças à medida).

“A proposta disso é tornar o mercado mais justo. Mas contrabalance isso com o desenvolvimento tecnológico natural que vem acontecido ao longo dos anos. O avô deste pescador usava rede e pequenos barcos. Hoje, ele consegue investir em grandes barcos, equipamentos mais modernos e, com isso, aumenta o seu potencial de pescar mais. Mas ele não pode fazer isso devido aos limites impostos pela União Européia, assim como não pode pescar em áreas que sempre foram tradicionais à sua família porque hoje quem está ali são barcos estrangeiros. O que esse pescador vai fazer, se ele não tem a dimensão do todo? Vai votar na opção que remover o obstáculo que ele conhece.”

 

QUEREM AJUDAR O VIZINHO

 

“Muita gente que votou para sair não fez isso porque tinha algum problema com a União Européia. Elas votaram para sair exatamente porque pensaram que sair não traria problema algum.

Tom: “Eu sou PhD e pesquisador, votei no ‘IN’ e posso dizer que quase todos os meus amigos e colegas fizeram o mesmo, porque trabalhamos juntos, pensamos parecido e, bem ou mal, as questões do referendo nos afetam da mesma forma. Porém, conheço algumas pessoas que estão fora do meu círculo imediato de conhecidos e que votaram para sair. E ao conversar com elas sobre os motivos pelos quais elas votariam para sair, eu descobri que… elas não tem nenhum problema com a União Européia! Também não tem nenhum problema com imigrantes – até porque, muitas delas moram em pequenos municípios que simplesmente não tem nenhum imigrante. Quando imigrantes vêm para o Reino Unido, eles costumam ir para as cidades maiores, como Londres, Manchester, Liverpool, Bristol… e não em municípios minúsculos no interior de Gloucestershire! Essas pessoas que eu conheci, em específico, não conheciam e nem tinham problemas com imigrantes.

Mas o curioso é que a razão pela qual elas votaram para sair foi porque, apesar de elas não sentirem no dia-a-dia um impacto do ‘O que é a União Européia’, elas ouviram do fazendeiro da região – um rapaz que cresceu com elas, amigo da família de anos – que ele está tendo problemas com a produção por conta das ‘leis da Europa’ (provavelmente, algo a ver com as cotas de produção estabelecidas pela UE, como no caso pesqueiro). Então, como a ‘União Européia’ é um conceito vago, você acha que isso não te atrapalha em nada mas incomoda o seu vizinho, você vota para ajudá-lo. É uma decisão simples e lógica.”

Crédito da foto: Elliott Stallion (Unsplash)
Crédito da foto: Elliott Stallion (Unsplash)

“O interessante é que essas são pessoas boas, e optaram pelo ‘OUT’ porque entendem que sair do bloco europeu vai ajudar alguém que elas conhecem, mas não sabem que fazendo isso vão prejudicar muitas outras pessoas que elas não conhecem!

Nesse contexto, não é surpresa o fato de que houveram várias pessoas ligando para as ‘poll stations’ perguntando se daria tempo de mudar os votos, se sentindo culpadas ou arrependidas ao ver a tragédia econômica que foi: a libra despencando, as ações caindo. Elas não faziam a menor noção do que estava em jogo.”

FOI UM PROTESTO CONTRA O GOVERNO

 

“O resultado dessa votação foi claramente um voto de protesto contra o governo”

Miles: “Há uma insatisfação enorme da classe trabalhadora contra o governo, e já não é de hoje. As ex-comunidades mineradoras jamais perdoaram o Partido Conservador por ter privatizado as fábricas e desmantelado as comunidades ali – sem, no entanto, promover nenhuma outra atividade no lugar. Veja bem, foi o Partido Conservador britânico que fez isso, não a União Européia. Foi também o Partido Conservador que vem implementando medidas de austeridade dessa camada, cortando os benefícios de que eles dependem. Os políticos nunca estiveram tão desconectados do resto do país.”

Crédto da foto: Flickr de Borja Iza
Crédto da foto: Flickr de Borja Iza

“Então, a partir do momento em que o David Cameron propõe um referendo sobre um tema importante e se posiciona oficialmente pelo ‘IN’, o voto das comunidades pelo ‘OUT’ é mais do que uma opinião. Para eles a União Européia não significa muita coisa mesmo. O voto ‘OUT’ é contra o governo, é a voz deles contra o ‘estabilishment’.”

 

PARA PODER COMPRAR UMA CASA

 

“Ele sabe que o país vai sofrer uma crise enorme e haverá desempregos, mas é a chance que ele vê dos preços caírem e ele poder comprar uma casa”.

Miles: “Eu tive uma conversa muito interessante duas semanas antes do referendo com dois colegas de escola – nos conhecemos há muitos anos. Conversamos sobre o referendo, claro, e um deles me informou que votaria no ‘out’. E quando eu perguntei, muito surpreso, porque faria uma coisa dessas, ele me veio com uma única e simples razão.

– Porque hoje eu não consigo comprar uma casa.

Eu fiquei abismado. Não era imigração, não eram acordos, não era nada disso em jogo.

– Mas se o Reino Unido sair da União Europeia, pode ter uma crise séria, isso pode até dividir o Reino Unido! Vamos perder a Escócia, a Irlanda do Norte vai entrar em turbulência, a gente perde acordos comerciais importantes que vão nos impactar bastante, há toda a movimentação livre pelos países…

– É, eu sei, isso tudo é péssimo – ele disse – mas também há a chance de, com a crise, os preços caírem. E aí sim eu consigo comprar uma casa. Porque hoje não dá.”

Crédito da Foto: Cindy Tang (Unsplash)
Crédito da Foto: Cindy Tang (Unsplash)

“Eu fiquei pensando muito naquilo. É uma razão muito egoísta para se tomar uma decisão como essa, não é? Querer que o país quebre só para você comprar uma casa?

É egoista, sim. Mas no fim das contas, qual o grau de pensamento que as pessoas dedicaram a pensar e discutir a questão? No fim das contas, as pessoas vão tomar uma decisão baseado naquilo que elas podem ganhar de volta, e se elas sabem que não vão conseguir algo nas circunstâncias atuais, vão escolher a alternativa que pode trazer alguma mudança.”

 

A Questão da Imigração

“A imigração não é a raiz do problema, é o sintoma. Mas é um sintoma que vende jornais”.

Tom: “Os jornais tiveram um papel preponderante nisso. Rupert Murdoch (Nota: é um magnata dono dos tablóides ingleses mais populares do Reino Unido), tem todos os interesses que o país saia da União Européia. Por causa dos jornais, ele exerce um enorme poder aqui no Reino Unido, mas não consegue aumentar sua influência porque muito da legislação europeia barra o poder dele. Obviamente, ele quer perder esse freio”.

Suzanne: “Ele conhece muito bem o público que lê os seus jornais, e determinou qual jornal teria que tipo de posicionamento frente ao referendo. E para conseguir influenciar a votação da forma que ele quer, ele precisa de um bode expiatório convenienente. Falar da economia e da crise é muito complexo e abstrato; os imigrantes são o bode expiatório perfeito”.

Tom: “Imagine que isso é uma bola de neve ao longo do tempo. Pegue uma pessoa que já está sofrendo toda essa pressão social e financeira de que falamos há anos, e que está com raiva do governo. Inicialmente, ele não conhece nenhum imigrante, e portanto não teria nada contra eles. Mas está desempregada, com filhos para alimentar, e lê no jornal que está havendo uma “a imigração em massa” e há falta de recursos do sistema de saúde. Então ela vai para o hospital onde descobre que só pode ser atendida em 4 horas e vê na sala de espera uma família de indianos. Então, como ele já tinha essa mensagem subconsciente sobre imigração, começa a pensar: ‘É verdade, se essa família não estivesse aqui, eu não teria que esperar por tanto tempo’. Tudo começa daí.”

Crédito da Foto: Flickr de Kevin Walsh
Crédito da Foto: Flickr de Kevin Walsh

Tom: “Essa questão piorou com o aumento dos refugiados sírios. Para você ver como os tablóides abordaram essa questão: pelas regras da imigração do governo, uma pessoa que tenha recebido asilo como refugiado não pode trabalhar – é lei, ponto. Porém, o tablóide coloca na capa uma manchete com letras garrafais ‘Refugiados não fazem nada o dia inteiro e sobrecarregam o sistema’. Só que quando você vai ler a matéria, está em letras pequenasno último parágrafo a explicação de que eles não estão trabalhando porque a lei não permite. O tablóide alega que é imparcial porque colocou a informação completa no texto, mas o problema é a forma como ele faz isso – é totalmente tendencioso”.

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Poderíamos falar sobre isso por horas.

Mas a melhor abordagem que eu vi sobre o assunto foi esse vídeo publicado em janeiro pelo The Guardian, um mês antes do referendo ser convocado. Eu o tinha assistido na época e revê-lo, hoje, chega a ser assustador de tão premonitório. Ele começa falando do fenômeno Trump nos Estados Unidos, alertando para a fatalidade daquilo que viria a se confirmar depois: de que a candidatura de Trump é real, assim como o crescimento das alas de extrema direita na Europa – um sintoma frequente que surge quando há insatisfações sociais.  Mas como o Guardian explica melhor do que ninguém que “raça, religião e etnia são frequentemente descritos como protagonistas, mas é a economia global que modela a narrativa”.

Eu peço desculpas por não ter achado a versão do vídeo com legendas, mas eu recomendo muito que quem conseguir entender inglês assista: é uma abordagem inteligente sobre um assunto preocupantemente atual.

 

XENOFOBIA E OS ATAQUES DE ÓDIO

 

E porque o cenário já não era depressivo o suficiente, não tardou para pipocar pela internet flagras como esses: uma alta incidência de ataques xenófobos a imigrantes, europeus ou não. Alguns deles estão sendo reportados neste álbum, e não é difícil encontrá-los no Twitter também.

“Sempre haverá os idiotas”, diz Mark.

Sim, infelizmente esses fazem parte da radiografia também, embora felizmente em uma quantidade proporcionalmente bem menor do que o barulho que fazem. Nesse caso específico, sim, podemos chamá-los à vontade de racistas, imbecis e idiotas, porque eles o são mesmo: infelizmente, esta é uma desagradável tendência em alta em toda a Europa, não só no Reino Unido. Esses, sim, votaram no “Leave” especificamente contra os imigrantes – e apesar de que eles não sejam uma parcela alta dos 52% que votaram pelo “Leave”, eles certamente são a mais barulhenta e desagradável.

“O problema é que estes poucos xenófobos agora acham que estão apoiados por 52% da população, e se sentem na liberdade para descarregar seu preconceito”, diz Suzanne.

Deixo aqui um pitaco pessoal: acho que nesses casos há também como agravante a famosa teoria do “valentão de futebol” e do “valentão da internet”. Imbecis sozinhos são tímidos e calados, mas viram valentões para intimidar os outros quando estão “de  galera”. E assim como o “troll” de internet é super valentão para vomitar asneiras em páginas alheias com a proteção do anonimato da internet mas jamais faria isso cara a cara, há também a versão dele no mundo real que adora postar cartas xenofóbicas e pichar paredes quando sabe que ninguém está olhando.

A estes, que seja dado o mesmo tratamento dos trolls: Bloqueio. Ou ainda, polícia (que, aliás, não está do lado deles).

You shall not pass.

 

MAS NÃO ESQUEÇAMOS DAS OUTRAS VOZES

 

Grupos de ingleses (e de várias outras nacionalidades) estão formando redes virtuais e físicas de apoio para denunciar esses assédios e proteger as vítimas. Eles estão divulgando números da polícia para quem sofre esse tipo de assédio e dando apoio às vítimas.

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Isso eu retirei do Facebook de uma amiga inglesa que estava divulgando. Desculpem, não encontrei o crédito da arte e terei o prazer de dar para alguém, mas divulgo aqui porque creio ser também um serviço importante!

 

E há que se notar que, se há episódios de uma xenofobia barulhenta aqui e ali, há também um maior número de gentilezas carinhosamente espalhadas pela cidade em todos os lugares, para todos os imigrantes. E esse tipo de gesto silencioso aquece muito mais o coração do que qualquer coisa.

Ah, inclusive, neste mesmo post do balde das flores encontramos depoimentos como esse.

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“Eu sou uma das pessoas que votaram para sair. Por favor, pegue uma rosa mesmo assim, e saiba que nem todos nós votamos por causa da imigração”.

Eu confesso que, ainda assim, ler esses textos sobre esses episódios de xenofobia me incomodam sobremaneira. No fundo, eu continuo com uma certa incômoda sensação que faz eco com que a Letícia, uma amiga minha brasileira que mora em UK, disse: “eu sei que isso não vai acontecer, mas eu fico com a sensação de que se eu for na rua vão me atacar”. Ainda que a gente saiba que esse pensamento não é geral, também sabemos que os ânimos estão exaltados, e que a sensação de “você não é bem-vindo” está à espreita.

Porém, tive uma sensação muito acolhedora esta semana, em meio a tantos ingleses, que me desfez essa sensação. E continuo tendo, aliás. Resolvi pôr meu foco seletivo na metade cheia do copo (ou melhor, nos 48% do copo que querem que a gente esteja junto, e que é gente para caramba) e continuar acreditando que a sensação que eu sempre tive desde que cheguei no Reino Unido é a mesma: que o britânico é acolhedor, é pró-diversidade e, sobretudo, é contra injustiça.

Crédito da Foto: Jason Briscoe (Unsplash)
Crédito da Foto: Jason Briscoe (Unsplash)

Uma dos episódios mais “aquece o coração” que eu li foi no ano passado, uma semana depois dos atentados de Paris. Enquanto na França foi reportado o ataque a várias mesquitas muçulmanas em retaliação aos ataques terroristas de novembro, os jornais ingleses reportavam o seguinte fato: uma mulher muçulmana pegou um trem com sua irmã na cidade de Newcastle, no norte da Inglaterra, quando um homem se aproximou com uma série de xingamentos racistas. “Saia já desse trem, porque este é o meu país. Vocês ficam bombardeando vários países e não merecem estar aqui”. Foi quando os outros passageiros do vagão se aproximaram e começaram a defendê-la. Mandaram o homem sair do trem – e a saída dele foi aplaudida por todos do vagão.

Talvez, exatamente porque os atos de ódio de poucos ganhem tanto a atenção, há que se compartilhar também as mil gentilezas silenciosas e discretas no trem, no metrô, nos baldes de flores pela rua. Que seja essa nossa contribuição ativa contra esse ciclo cinzento.

(Aproveito para começar pela minha. Apesar de ter o visto inglês, eu nunca tive a mais calorosa das recepções pelos oficiais da Imigração no aeroporto, pelo contrário – e credito isso ao fato de que esse é o padrão da Imigração, que tem que fazer o trabalho deles. Porém pela primeira vez, ao voltar de férias para um Reino Unido pós-Brexit, sou recebida por um gentil oficial no aeroporto. Se foi um “Brexit-effect” ou se foi só gentileza, não sei. Mas para quem acordou no dia 24 de junho com a amarga sensação de ser unwelcome, foi uma surpresa gratificante receber boas-vindas ao voltar para casa. “Seja muito bem-vinda. Have a lovely day”, disse ele).

Vale ressaltar, ainda, que Londres elegeu o primeiro prefeito muçulmano entre as capitais da Europa. E que o Nigel Farage – líder do partido de extrema-direita UKIP e candidato ao prêmio “Donald Trump” pelo volume de baboseiras vomitadas – pode comemorar o Brexit o quanto quiser porque foi a única coisa que ele ganhou até hoje: ele nunca conseguiu se eleger em nada.

Essa é a Inglaterra que eu conheci e aprendi e que já era assim antes de qualquer referendo. Decidi que são esses ingleses a minha turma, e que se eu ficar por aqui vai ser por quanto tempo eu quiser e será por causa dessa galera do bem.

Quanto aos que não me querem aqui, bem… Eu nunca tive intenção de andar com eles mesmo. Suck it up.

 

Mas a melhor reflexão sobre o brexit até agora foi…

 

Eu estava sem saber como ia terminar esse loooongo post… Até que encontrei essa reflexão postada no Facebook de Dave Jarman, um amigo do meu marido e que resumiu com poucas palavras tudo o que eu levei páginas e páginas para escrever aqui. Fecho, então, com as palavras dele.

“Após um longo fim de semana sentindo-me principalmente furioso, eu cheguei a algumas das conclusões seguintes.

O voto para sair foi composto dos seguintes elementos:

1)Uma frustração justificável com as últimas 3 décadas de crescente desigualdade em que a globalização e a capitalização contribuiu para deixar os ricos mais ricos e muitas áreas do país ainda mais pobres;

2) Uma frustração justificável de que os votos (nas eleições) são um desperdício porque testemunhamos isso nas nossas eleições anteriores. É elucidativo ver quantas pessoas verdadeiramente acreditaram que seu voto não ia impactar dessa vez no resultado. Provavelmente porque nunca tinha impactado antes…

3) Um fracasso de 30 anos em explicar todas as vantagens e o saldo positivo da União Européia, com governos sucessivos e uma imprensa que usa isso como um bode expiatório conveniente, quando a própria União Europeia se revela complacente diante de algumas preocupações;

4) Uma minoria tóxica de pequenos-ingleses  nostálgicos, temerosos de mudanças, pobremente informados e preocupantemente racistas que se deixaram levar pelo pensamento de que sair da União Europeia seria uma indulgência às suas fantasias. A minha maior fonte de frustração é que praticamente nenhuma dessas causas tiveram nenhuma raiz na União Européia em si. Foi a ignorância dos fatos e o desejo de dizer algo que nos trouxe até aqui.

 

Aliás, se há algum aprendizado que tirei desde o referendo foi a maturidade política nas reflexões que eu presenciei ao longo desses dias por algumas pessoas (e que assim permanecem, mesmo com a insatisfação do resultado). Não há como prever o que vai acontecer com o Reino Unido, e é inegável que o primeiro ministro britânico deu um monumental tiro no pé, mas em meio a tamanha turbulência eu tive o prazer de ter contato com pessoas que, ainda que incertas sobre os rumos do país e frustradas com o resultado, estão divulgando propostas e iniciativas de engajamento político com maturidade e propósito. Mais do que pedir a petição para um novo referendo, tenho visto pessoas divulgando links para que cada eleitor possa contatar diretamente o seu deputado sobre o Brexit;  filiando-se a partidos políticos para poderem participar de forma mais inteligente nas campanhas e informação… Vi, inclusive, a divulgação de um livro nas comunidades científicas que prega a participação mais ativa dos cientistas no processo político “e convida-os a sair da sua torre de marfim”.

E eu volto à reflexão do Dave Jarman, que fechou com a reflexão mais importante do que é preciso acontecer para o futuro:

“Vamos também forjar um Reino Unido que seja mais inclusivo e participativo do que o que temos agora. Um grande pedaço da população se sente marginalizada e foi frequentemente pobremente informada sobre a decisão que eles tomaram – é preciso educar e engajar as pessoas apropriadamente, para empoderá-las e habilitá-las.”

Que bonito. Aprendamos com isso, já.

*******

Bom, é isso. Espero que tenham gostado do post: chegou um pouco atrasado e veio muito comprido, mas que nem de longe esgota o assunto.

Resta acompanhar as cenas dos próximos capítulos, mas enquanto eles acontecem fica o convite de continuarmos a reflexão madura aqui – a caixa de comentários está às ordens!

Taí uma vantagem para quem gosta de Game of Thrones: o quiproquó do Brexit começa bem quando a temporada acaba, de modo que ninguém vai ficar órfão de uma boa novela cheia de reviravoltas para acompanhar.  Não tem sangue nem dragões, mas tá prometendo só emoções e, salvo a descoberta de uma bola de cristal eficaz, a próxima temporada está toda livre de spoilers. A conferir.

Comments

4 COMENTÁRIOS

  1. Clarissa, minha amiga. Pode ter demorado ou ser longo, mas foi, sem dúvida, o melhor e mais completo esclarecimento sobre o que tem acontecido no Reino Unido nos últimos tempos e que culminaram nessa decisão sobre deixar a UE. Acredito que a parte mais importante e meio desprezada pelas reportagens que tenho lido é a reflexão histórica que mostra um pouco do sofrimento de grande parte da população inglesa esquecida nas últimas décadas. Para nós que estamos distantes da situação e somos apenas bombardeados com as “informações” da mídia, muitas vezes parcial, esse texto traz uma série de dados de forma compreensível, didática e fundamentada em depoimentos diversos e elucidativos. Parabéns e obrigada por divulgá-lo. Erika Breyer

    • Erika, fico feliz pela sua mensagem e sua visita! Sim, esse post ficou esgasgado por um tempo, e necessitou tempo, digestão e conversas para entender melhor.
      As coisas estão muito incertas – e infelizmente, não só aqui!

      Tudo de bom, minha linda! Avise quando estiver por terras daqui! 🙂

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