O que acontece quando a gente finalmente visita um lugar que sempre existiu na nossa cabeça de criança?

eu e uma rena na lapônia

Pois é. A Lapônia, era assim para mim: só existia nas histórias de Papai Noel, em que eu imaginava uma casinha fofa em meio a um mundo de neve, com as renas voadoras no estábulo ao lado do trenó e cheio de duendes trabalhando na garagem para fazer os presentes da molecada.

Aproveito para confessar uma coisa:lembro bem que, quando eu tinha 6 anos, tive uma aula na escolinha em que a gente aprendia a escrever cartas, e preparei uma com todo cuidado (usei até papel de carta perfumado, veja só!) e, ao invés de entregar aos meus pais, coloquei no envelope onde preenchi “Papai noel – Lapônia – Pólo Norte” no destinatário. Exatamente como eu tinha aprendido com a professora.

E adivinha o que aconteceu? Recebi dias depois a mesma carta, com o carimbo dos Correios informando “endereço não identificado”. Começaria assim, bem cedo, as minhas decepções com os serviços públicos desse país.

Mas eis que a oportunidade de uma viagem para a Noruega me surgiu assim, meio que de repente e sem muitos planos. E estava lá no programa: “Lapland”, (Lapônia em inglês). Como resistir?

A visita à Lapônia estava incluída num tour da Hurtigruten, cruzeiro pelo país em que eu estava participando (e que conto mais detalhes nos próximos posts!) e aconteceu em julho, no verão. O desembarque acontecia em Honningsvåg (ainda não aprendi a pronunciar isso! 🙁 ) e começava bem cedinho, às 6 da manhã – o que, na prática, não fazia muita diferença, porque ali estávamos bem acima do círculo polar ártico, e portanto, na terra do sol da meia noite, quando simplesmente o dia não escurece! 🙂

Que horas são? 23:53 da noite, e ele assim, todo amostrado!
Com vocês, o sol da meia-noite! Que horas eram quando essa foto foi tirada? 23:53, e ele assim, todo amostrado!

O tour contemplava um passeio pela região da Lapônia e o café da manha no Cabo Norte, ou Nordkapp, o ponto mais setentrional da Europa e onde considera-se que é a divisa entre o Oceano Atlântico e o oceano Ártico. Tudo isso na região onde vivem os lapões, que ocupam o território de 4 países: Noruega, Suécia, Finlândia (onde, aí sim, moraria o bom velhinho) e Rússia.

Região da Lapônia. Mapa disponibilizado pela Wikimedia Commons.
Região da Lapônia. Mapa disponibilizado pela Wikimedia Commons.

O passeio começou silencioso, muito por causa da hora (o corpo sabia que era cedo, embora o sol alto não denunciasse isso em nada) e do frio (deliciosos 6 graus de um verão do norte norueguês), mas com muita expectativa.

E enquanto o ônibus nos levava para o mirante onde aconteceria o café da manhã, a gente acompanhava atento as paisagens. Um pouco desoladas, mas de uma beleza impressionante.

Fiordes do Cabo norte Noruega

Visitar a Lapônia é ter em mente que a paisagem é completamente diferente do que estamos acostumados. Quem esperar para ver algo que não seja uma paisagem inóspita pode se decepcionar – e por outro lado, perder o que a região tem de mais bonito: as paisagens.

Fiordes NOruegueses do Cabo NOrte

Você reparou que quase não há árvores pela região, e a paisagem é composta sobretudo de fiordes, rochas e mato baixo? Pois é, essa região próxima ao Nordkapp possui apenas dois meses (julho e agosto) em que a terra não está sob a neve. Fora isso, o clima é bastante rigoroso e muitas pessoas se mudam da região mais para o sul nos outros meses do ano.

Mas tem alguém que se adapta muito bem obrigada nesse frio todo: as renas. E são elas que vamos vendo ao longo do caminho – pontos perdidos no meio da paisagem, mas o suficiente para me deixar encantada!

NOruega_Nord_Kapp_renas

renas

Mas admito que a chegada ao Nordkapp me pareceu meio decepcionante à primeira vista. A paisagem desolada e o tempo ruim que fazia lá fora não ajudaram muito a me dar uma imagem bonita do local. O que é mais culpa do lugar do que do tempo: o Nordkapp fica no alto de umas montanhas cujos paredões despencam abruptamente no mar – os típicos fiordes noruegueses.

Fiodres NOruega NOrd Kapp

Uma estrutura de um mundo de metal marca o ponto mais setentrional da Europa, num ângulo de 180 graus diante do mar. Mesmo com o tempo ruim, a vista era impressionante – dava para ver as nuvens de tempestade em direção à gente, num espetáculo belo e assustador. Coisas da tal Mãe Natureza…

Monumento Nord Kapp Noruega

Mas como o tempo na região é absolutamente inconstante, bastou uma nesguinha de sol para eu imaginar que a vista do sol da meia-noite ou da aurora boreal, dali, deve ser um espetáculo magnífico, com céu limpo.

Nord_Kapp_Noruega

E enquanto no Oceano Ártico fazia sol, à esquerda o Atlântico anunciava chuva pesada. O resultado não poderia ser mais bonito… 🙂

arco-riris-noruega
Minha única pena: com medo de estragar a câmera por causa da chuva, e com os dedos quase congelando de frio, não consegui caprichar na foto, nem mostrar o quanto era mágico um arco-íris nos fiordes. Ficou esta foto como um mero tiragosto, porque o resto está na lembrança!

Enquanto isso, o café da manhã acontecia farto, quentinho e gostoso no observatório do Nordkapp, onde há uma série de exposições e mostras de filmes sobre a conquista do Cabo Norte. O lugar é enorme e com uma visualização privilegiada do lugar – embora eu confesso que ia ali para recuperar a circulação dos dedos e fugir do vento por alguns instantes!

Observatório_Cabo_Norte

Depois desse trololó todo, seguimos para conhecer a Lapônia, os lapões e, finalmente, as renas bem de pertinho!

Ah, fica o aviso: os lapões são um povo indígena do norte que habita a região da Lapônia, mas mesmo com esse nome, eles não gostam de serem chamados de lapões. Consideram arcaico e pejorativo. Eles se denominam “Povo Sami” (pronuncia-se “Sámi”, com o “a” bem aberto) e, agora explicado e a pedidos, é assim que a gente vai se referir a eles a partir de agora.

Um acampamento Sami. Os indígenas são nômades e vivem quase que exclusivamente da pesca e da criação de renas.
Um acampamento Sami. Os indígenas são nômades e vivem quase que exclusivamente da pesca e da criação de renas.

E aí eu achei essa parte da viagem interessantíssima, porque me mostrou um monte de coisa que eu não sabia. Ó só:

– Os Sami são indígenas nômades, e mudam-se de acordo com as estações do ano, mas sempre estão localizados próximos ao mar e ao lago, já que vivem sobretudo da pesca;

– As renas são criadas livremente nos campos durante o verão, e no inverno muitas são recolhidas por seus donos (sim, lá as renas tem a mesma criação que as vacas para nós. São dóceis, fácil de serem domesticadas, ajudam no trabalho pesado como puxar trenós e carroças e também servem como comida na época de frio);

– Por isso, não se pergunta nunca para um Sami quantas renas ele tem – é muito indiscreto. Tem o mesmo efeito de te perguntarem quanto você tem na sua conta do banco;

Senhor Sami - Lapônia 2

– Os Sami são bastante organizados, e possuem representação no parlamento sueco e no norueguês (provavelmente nos outros países também, mas não li anda confirmando isso). E eles próprios possuem um parlamento do seu próprio povo, sempre presidido por dois dirigentes: um homem e uma mulher Sami. Entre eles existe a total igualdade na divisão de direitos e deveres;

– Como indígenas, eles vivem em um estilo de vida de completo respeito com a natureza, e a relação que este povo tem com as renas é vital para a sobrevivência de ambos, especialmente no inverno.

– Como muitas tradições indígenas, os Sami possuem bastante artesanato, especialmente feito de pele de rena e escultura em madeira. É fácil identificá-los pelas roupas extremamente coloridas e por uma delicadeza apaixonante.

Senhor Sami - Lapônia
Outra curiosidade: os homens Sami usam frequentemente um chapéu de três pontas. Porém, se ele for usado com as duas pontas paralelas ao rosto, ou seja, uma apontando para cada lado da cabeça, é um sinal de que ele é casado. Se o chapéu for usado com uma das pontas para a frente do rosto, aí o Sami em questão é solteiro e tá na pista para negócio! 🙂

O interior de uma casa Sami é semelhante ao das ocas indígenas dos índios americanos: em formato de cone, com espaço no interior para uma fogueira. E no interior também que eles secam suas roupas de frio, sempre feitas à base de pele de rena.

Roupas Sami

E taí outra curiosidade que aprendi lá: os pelos das renas possuem uma espécie de “efeito de calor” que aquece imediatamente a pele pelo simples contato. Por exemplo, sabe quando está muito frio e você se cobre com uma manta ou casaco de lã, mas parece que leva um tempo até o corpo “perder” a sensação de frio e começar a esquentar? Pois é, isso não existe com os pêlos da rena: basta colocar a mão gelada e o pêlo aquece imediatamente. É por isso que a criação de renas é decisiva para que os Sami possam sobreviver nos meses de inverno (em que a temperatura pode chegar a -50 graus). E também porque os Samis cuidam das renas no período do verão, já que, por esta mesma razão, elas são extremamente sensíveis ao calor. A guia comentou que muitos Samis tiveram que mover suas renas para outras regiões ou mantê-las nos lagos porque uma “onda de calor” na região elevou os termômetros para 15 graus, o que é muito ruim para elas.

Renas na Lapônia

O casal em questão que visitamos, por exemplo, estava próximo ao roteiro dos tours pois é  nesta época do ano que há um maior fluxo de turistas nesta região e é a possibilidade que eles tem de vender o seu artesanato – que também inclui esculturas rústicas de madeira.

Artesanato de madeira Sami

E depois dessa visita curtinha e apaixonante, a gente segui caminho para Hammerfest, onde embarcaríamos novamente no navio.

Mas assim, maravilhados. Porque a Lapônia foi bem isso: é uma beleza singular e assustadoramente rústica – quase imaterial, já que é cheia de tradições, lendas e arco-íris.

Olhando por esse lado, nada mais natural que a lenda do Papai Noel nascesse lá. Um lugar onde o sol não se põe e as luzes dançam no céu já é mágico por natureza, né? 🙂

Esta jornalista e blogueira viajou pela Noruega em parceria com a companhia de navegação Hurtigruten, em julho de 2013.

Comments

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Clarissa Donda
Sou jornalista e escritora. Eu criei esse blog como um hobby: a idéia era escrever sobre minhas viagens para não morrer de tédio durante a recuperação de um acidente de carro. Acabou que tanto o blog quanto as viagens mudaram a minha vida (várias vezes, aliás). Por isso, hoje eu escrevo para ajudar outras pessoas a encontrarem as viagens que vão inspirar elas também.

5 COMENTÁRIOS

  1. Adorei! Sabe que a gente não teve contato com os Sami quando estivemos ali pertinho, em Tromso. É que como as excursões eram todas muito caras por lá, gastamos nossas moedinhas só nos passeios para avistar a Aurora Boreal.

    Mas deixo a dica aqui para quem quiser conhecer os Sami E a Aurora. Há tours que vão para áreas ermas visitar tendas e servem refeições em barracas Sami!!! Só que como acontecem em lugares fixos, só vai rolar de ver a Aurora caso o tempo estiver limpo e aberto (o que não foi nosso caso).

    Se alguém tiver a sorte de fazer esse passeio, deve ser uma experiência inesquecível. E tem mais uma coisa (ia me esquecendo…). Nesses tours, eles dão pele de rena para a pessoa se aquecer durante o jantar. Deve ser massa demais!!!

    Parabéns pelo post. Estava esperando ansiosamente!

  2. Apaixonante este post. Eu visitei um casal Sami, e o Papai Noel na Finlândia. Também fui na época do sol da meia noite. Foi uma experiência e tanto. Vou ficar de olho nos seus posts do Hurtgruten, pois estou querendo ir em Setembro/Outubro para ver a aurora boreal. Acabei de me subscrever no seu blog. Adorei.

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