[adpost]Para mim, ler relatos de viagem é uma delícia: não apenas para refazer, na imaginação, os passos de quem os escreveu, como também para buscar inspiração para meus próprios roteiros.

 Com a proliferação de conteúdo sobre turismo na internet, o que não falta hoje é informação sobre os mais variados destinos: reportagens, guias, diários de bordo.

 Mas nem sempre montar um planejamento de viagem foi tão simples. E muito, muito antes dos guias impressos, houve quem desbravasse o mundo, literalmente, na cara e na coragem.

 Sempre curti esse tipo de leitura e, outro dia, enquanto buscava e-books, me deparei com o livro “A woman’s journey round the world” (“A jornada de uma mulher ao redor do mundo”, em tradução livre). O título me atraiu imediatamente, mas quando fui ver do que se tratava, fiquei ainda mais interessada: era o diário de viagens de uma exploradora da primeira metade do século XIX.

Ida_Pfeiffer

Se o simples fato de viajar, naquela época, já era uma grande aventura, imagine fazer isso sendo mulher – e, não raro, sozinha! Nascida em 1797 em Viena, Ida Laura Pfeiffer era viajante e escritora: sua especialidade eram os relatos de viagem. Foi uma das pioneiras, e sua paixão por conhecer o mundo era tal que muitas vezes viajava com dinheiro contado e por territórios perigosos.

Em 1846, Ida iniciou uma jornada ao redor do mundo, que passou pelo Brasil e outros países da América do Sul, além de Taiti, China, Índia, Pérsia, Ásia Menor e Grécia. Foram dois anos de viagem, contada no tal livro, publicado em 1850.

 A narração de Ida é repleta de detalhes: você consegue visualizar direitinho, na imaginação, as paisagens e cenas descritas. Ela conta tudo, não apenas sobre os destinos finais, como também sobre os trajetos e incidentes de jornada; analisa os costumes, faz paralelos com a sociedade de onde veio e opina. Embora o excesso de detalhes possa, em alguns pontos, ser cansativo, acredito que este viés cultural e não isento da autora torne a leitura ainda mais interessante.

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Crédito da Imagem: revista CHC Ciência hoje

 Ao ler o livro, fui direto para a parte do Brasil – era grande a curiosidade de conhecer a perspectiva de uma estrangeira de outra época sobre o nosso país e a sociedade de então.

 A reação de Ida ao adentrar a Baía de Guanabara foi de puro encantamento: depois de semanas em um barco cruzando o Atlântico, a paisagem que na época deveria ser ainda mais deslumbrante do que a que conhecemos hoje fez a viajante escrever, entusiasmada, “que toda pessoa deveria vir ao Brasil ao menos uma vez na vida, para contemplar tal beleza e magnitude”.

 Ao longo dos dias seguintes, no entanto, a empolgação inicial arrefeceu quando ela se deparou com a sujeira pelas ruas do Rio de Janeiro (chega a ser engraçado), além dos alagamentos que castigavam a cidade a cada chuva (não, você não leu errado a data lá em cima. A viagem foi em 1846 mesmo. Quase 170 anos depois, o relato continua incrivelmente atual!).

 Ida também fez análises com um toque antropológico, embora não desse muito crédito à própria opinião: com a submissão da época, ponderou que, “além de ser mulher, não era estudada nesses assuntos” e estaria apenas relatando suas impressões sobre o que observou.

 Suas impressões, no entanto, traçam um rico panorama social da época – às vezes com um certo preconceito, em outras com bastante perspicácia. Criticou o hábito local de delegar completamente a criação dos filhos a serviçais e levantou suspeitas de que a grande animação com que alguns brasileiros se dedicavam às frequentes festividades religiosas não fosse exatamente por devoção aos santos, mas sim pelas oportunidades de interação social e paquera que os eventos ofereciam. Mais adiante, observou que o hábito das queimadas para abrir espaço nas florestas para a agricultura deveria trazer mais prejuízos do que benefícios à natureza e à população.

 À parte a cultura e os costumes brasileiros, um ponto alto do livro são as expedições pelo interior do Rio de Janeiro para observar a natureza, um dos principais interesses da escritora na visita ao Brasil. A “viagem” à floresta da Tijuca saindo do centro do Rio e a épica jornada pela serra fluminense – passeios hoje tão triviais, pelo menos para os cariocas – foram verdadeiras aventuras! A exploradora se deparou com todo tipo de dificuldade e perigo mas, persistente, foi até o fim do seu roteiro, maravilhando-se com a riqueza natural das terras tupiniquins e brindando seus leitores com relatos que são um verdadeiro tesouro histórico-geográfico.

 Do Brasil, Ida seguiu para a Argentina e de lá para outros países. Alguns anos depois, fez outra grande viagem ao redor do mundo – mas isso é assunto para outro post. O objetivo deste foi só dar um gostinho do livro que – bom saber – está disponível gratuitamente na Internet, em sites como www.dominiopublico.gov.br.

 Mais sobre a escritora viajante

Ida Pfeiffer não foi sempre uma viajante. Antes de sair pelo mundo, ela seguiu o “protocolo” social: casou, teve dois filhos e o mais ousado que havia feito até então foi dar aulas de música e desenho para ajudar no orçamento doméstico. Apenas depois de enviuvar e ver os dois rebentos já adultos, cada um com sua casa, que ela colocou o pé na estrada e realizou o sonho de infância. A partir daí, foi uma viagem atrás da outra, e o dinheiro que ela ganhava publicando os relatos servia para financiar novas expedições. Segundo a Wikipédia, seus livros eram tão populares que foram traduzidos para sete idiomas. Ela também foi membro das sociedades de geografia de Berlim e Paris, mas não foi aceita na Royal Geographical Society de Londres por ser mulher (quem perdeu foram eles, certamente!). Após a morte da viajante escritora – ao que parece, em decorrência de uma doença adquirida em Madagascar – um de seus filhos publicou uma biografia da mãe, também disponível gratuitamente aqui.

Comments

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Catarina Donda
Profissional de comunicação, esposa e mãe multitarefa. Para não negar o sobrenome, também sou adepta do "dondear" por aí. Adoro música, livros, viagens, História. Se puder viver tudo isso em família, então, melhor ainda! Uma amiga certa vez me disse: "Desta vida, só se leva o que a gente viaja e o que a gente come". Nunca mais esqueci. Além da interpretação literal da frase (que não inclui se empanturrar, mas sim apreciar uma boa mesa com moderação rs), a declaração resume, para mim, o investimento em momentos inesquecíveis ao lado das pessoas que amamos, experiências cujas lembranças se tornam o nosso maior patrimônio.

12 COMENTÁRIOS

  1. Para mim, foi uma grande surpresa saber que, naquele tempo, já existia uma mulher tão ousada. Que bom! Pois contribuiu grandemente para eu saber que as enchentes do Rio de Janeiro nunca irão acabar. Rsrsrs…

    Parabéns pelo post!

  2. Catarina, amei amei!!! Não conhecia a história da Ida mas é maravilhoso saber que uma mulher no passado fez tudo isso sozinha. O livro é com certeza uma grande herança para nós mulheres viajantes, além de ser uma história atemporal e pronta para qq geração que a ler.
    Adoro seu blog!

    Bjos

    • Oi Manoela, fico feliz que tenha gostado do post! Realmente a história da Ida é impressionante e inspiradora . Só um esclarecimento: o blog não é meu e sim da minha prima, Clarissa Donda. Eu também sou fã do blog e do trabalho dela e colaboro com posts, como este aqui. : )

    • Muito obrigada,Nina!! Espero que você goste do livro e continue curtindo o blog também! : ) E, esclarecendo, o Dondeando por Aí é da Clarissa Donda, minha prima. Eu também adoro e por isso colaboro com posts como este aqui.

  3. Olá, Clarissa e Catarina!
    Adorei esse artigo! Estou escrevendo para o meu mestrado e percebo que cada vez mais procuro relatos de viajantes mulheres entre o séc. XVIII e XIX. Você tem alguma indicação de material para que eu possa continuar minhas leituras?
    Grata!
    : )

  4. Olá, Clarissa, também me interesso pelo assunto. Nas suas leituras sobre literatura e viagem, você se deparou com alguma mulher escritora viajante brasileira do século XIX-XX?

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